DE UMA MANEIRA GERAL, as religiões do mundo procuram agradar à divindade de algum modo, seja por oferendas ou sacrifícios. Conhecemos bem o complexo sistema sacrificial do antigo Israel no culto javista. Conhecemos os grupos cristãos modernos que se deixam crucificar ou se autoflagelam para serem participantes do sacrifício de Cristo. Sabemos de cristãos que sobem escadarias de igrejas de joelhos para agradecer ou implorar uma graça. O próprio apóstolo Paulo dizia(talvez com um indisfarçável orgulho espiritual?) que ele carregava “as marcas de Cristo” no corpo.
O Deus de Israel era(é) pessoal e moral. Ele fez um trato com o povo escolhido. O povo se obrigava a cumprir todas as ordenanças por ele prescritas(morais e cúlticas) e ele se comprometia a abençoar o povo na medida em que o povo cumprisse suas exigências. Era uma troca, “faça isso que eu te dou isso”. A lista de “bençãos e maldições” de Deuteronômio nos mostra isso. Lá está escrito que se o povo cumprisse “fielmente ao Senhor, o seu Deus e seguirem cuidadosamente todos os seus mandamentos(…)” Deus faria que todos seus inimigos fossem derrotados. Encheria os celeiros e as colheitas; concederia grande prosperidade; enviaria chuva na hora certa, não haveria seca; seria um povo que emprestaria a muitas nações mas não precisaria tomar emprestado.
Eram bençãos muito boas. Mas tinha a contra-parte. “Entretanto, se vocês não obedecerem ao Senhor, o seu Deus(…)” e aqui vem a interminável lista de desgraças, doenças, pobreza, derrotas. A lista de “maldições” é bem maior que as das “bençãos”. Vejamos algumas palavras ditas “pelo Senhor Deus”:
“O Senhor os encherá de doenças até bani-los da terra(…)o Senhor os ferirá com doenças devastadoras, febre e inflamação, seca, ferrugem e mofo, que os infestarão até que morram”.
“O Senhor fará que vocês sejam derrotados pelos inimigos(…)”
“Vocês comerão o fruto do seu próprio ventre”(ou seja, fezes)
“Se vocês não seguirem fielmente todas as palavras desta lei, escritas neste livro, e não temerem este nome glorioso e terrível, o Senhor, Teu Deus, ele enviará pestes terríveis sobre vocês e sobre os seus descendentes, desgraças horríveis e prolongadas…”
E o texto de Deuteronômio28 prossegue com as terríveis advertências. Mas agora vem o ponto central do qual gostaria de refletir. O cristianismo é a única religião onde a divindade não pede para que o devoto cumpra alguma obrigação moral ou ritual para que receba graça ou “seja salvo”. O conceito de Graça é um conceito elevado que só tem no cristianismo. Mas a própria doutrina da graça não deixa de ser ambígua nas palavras do seu principal construtor, o apóstolo Paulo.
Ele nos informa que Deus nos justifica não pelas obras da Lei(aquelas sobre as quais viriam as maldições se não fossem cumpridas diligentemente) mas simplesmente pelo fato de aceitarmos o sacrifício de Jesus Cristo por fé. Isso é revolucionário! O cristão não está obrigado a decorar uma longa lista de regras morais para cumpri-las, já que a Graça lhe é, de graça…não exige pagamento. Nem esforço, nem sacrifícios nem oferendas.
Mas existe um problema: nós achamos a Graça sem graça...pensamos que apesar da Graça, não é possível que Deus não nos exija uma correção moral e o nosso sacrifício em “levar a cruz”. Gostamos de “fazer a obra do Senhor” pois Deus recompensa a quem se gasta em sua “obra”. Dizemos que precisamos “ofertar e pagar o dízimo” pois senão, Deus não nos tratará com Graça, mas com a des-graça do Devorador.
E não é paradoxal (é mesmo ou é minha leitura equivocada?) que o “Apóstolo da Graça” tenha citado a história do antigo Israel como exemplo para os cristãos da graça? Ele lembra que israel esteve debaixo “da nuvem” no deserto, foram “batizados em Moisés”, comeram da comida espiritual, mas que Deus não se agradou da maior parte deles por isso, seus corpos foram espalhados no deserto. E o apóstolo diz que tais coisas aconteceram como exemplos para que os cristãos não cobiçassem as “coisas más”: idolatria, prostituição, murmuração; ele lembra que aquele que está de pé cuide para que não caia e afirma que Deus não deixará que cristãos sejam tentados acima do que podem suportar. (1 Cor 10 1-13).
Tudo isso me parece destoar da Graça que não impõe regras, mas que acolhe independentemente de se estar caído ou não. Paulo ainda diz que Deus junto com a tentação, daria também o escape da tentação para que a tentação pudesse ser suportada. Essa afirmação não seria equivocada, já que cristãos sinceros estão sempre “caindo em tentação”? E tendo caído, eles devem olhar para um Deus gracioso ou para um Deus que deixou seu povo morrer no deserto?
Philip Yancey escreveu que
“Cresci com a imagem de um Deus matemático que pesava meus atos bons e maus em um conjunto de balanças e sempre me considerava em falta.(…) Graça significa que não há nada que possamos fazer para Deus nos amar mais(…) E a graça significa que não há nada que possamos fazer para Deus nos amar menos – nenhuma quantidade de racismo ou orgulho, pornografia ou adultério, ou até mesmo homicídio. A graça significa que Deus, já nos ama tanto quanto é possível um Deus infinito nos amar.”
Diz ainda que
“Atualmente, o legalismo mudou de foco. Em uma cultura totalmente secular, a igreja está mais inclinada a demonstrar falta de graça por meio de um espírito de superioridade moral ou uma atitude violenta para com os oponentes na ‘guerra cultural’ “. (1)
Afinal de contas, sabemos o que de fato é a Graça? Ou será que diferentes cristãos possuem diferentes concepções dela? Se nada podemos fazer para que Deus nos ame mais, por que as pregações evangélicas ainda são tão carregadas de preceitos morais, tipo, “se você beber cerveja, isso lhe trará o castigo de Deus”; ou “Se você fizer sexo antes do casamento com sua noiva, Deus não terá obrigação de abençoar o futuro casamento, pois o que começa errado, termina errado” ?
Já ouvi muito essas frases e poderia escrever várias outras com o mesmo teor que tenho ouvido nesse meu caminhar cristão de trinta anos.
Afinal de contas, o que é a Graça?
Volta ainda a este tema.
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(1) Philip Yancey, “Maravilhosa Graça”, Ed Vida
Yancey trata também neste livro, sobre os perigos de se usar a graça de forma equivocada, mas tenho algumas indagações sobre essa parte do livro que futuramente, poderei tratar aqui.